BOTEQUIM

'O Palácio dos Dodges" de Francesco Guardi

Numa tarde em Paris, um arménio adquire a pintura "O Palácio dos Doges, Veneza" de Francesco Guardi.

Sem o saber, iniciava uma das maiores colecções particulares do século XX, e um núcleo de 20 quadros do grande mestre italiano – o maior a nível mundial.

Calouste Gulbenkian não possuía na época nada de grande relevância ao nível da pintura e escultura europeia. 

Detentor de uma fortuna, Calouste Sarkis Gulbenkian, nascido a 29 de Março de 1869, na Turquia, de uma família arménia, tornara-se um dos nomes cimeiros no sector do petróleo.


Licenciado em engenharia, entregou-se aos combustíveis por decisão do pai. Este, banqueiro influente, fora dos primeiros empresários a perceber a importância futura do ouro negro - até ai menosprezado.

Depois de viajar pelo Médio-Oriente, onde conheceu os processos da sua extracção, Gulbenkian casa com Nevarte Essayan, arménia da alta sociedade, e fixa-se na Grã-Bretanha. Inicia a partir dela a construção de um gigantesco império.

Seduzido pela arte, torna-se rigoroso a coleccionar pinturas e esculturas de mestres europeus, móveis e pratas francesas setecentistas, porcelanas da China e de Sevres, jóias de Lalique, moedas clássicas gregas, arqueologia egípcia, faianças e azulejos do médio-oriente, tapeçarias europeias, lacas japonesas, rendas francesas, tapetes persas e livros de grande raridade.

António Brás

(primeiro de vários textos sobre Calouste Gulbenkian)

Os seus interesses na vida dirigem-se quase exclusivamente para os negócios, as artes e a natureza. Em jovem quisera, mesmo, ser botânico. Virando costas à vida social, fecha-se cada vez mais no seu universo dos negócios, recheado de preciosidades.

Curiosamente prefere habitar em hotéis a ocupar as suas luxuosas residências de Paris e Londres - que deixa para a mulher e os filhos Nubar e Rita.

Personalidade dual, concilia as suas facetas oriental e ocidental, racional esensitiva, esteta e comercial. 

Caloutes Gubenkian foi uma benção para a Cultura portuuesa.


Haver muita informação não significa só por si haver muito conhecimento, melhor conhecimento; significa por vezes o contrário: não pensar, não criticar, não desalinhar, não actuar.

O excesso na actual informação está, assim, a matar a genuinidade da cultura. 

Psiquiatras previnem que não somos feitos para levar com tanta programação, tanta alienação; previnem, igualmente, ser necessário, para nosso equilíbrio, voltarmos a escrever à mão, a lermos sem pressa, a relativizarmos as tecnologias, a falarmos pessoalmente uns com os outros e não com écrans.

Conceber a cultura como utilidade tornou a utilidade cultura. Produzir, consumir alienam as faculdades da criação, da intervenção. São Bernardo avisava que o excesso de trabalho e de obediência endurece os corações.

As precariedades, as prateleiras, os recibos verdes, os garrotes administrativos, os interesses partidários, a concentração de órgãos de comunicação, a menorização da sabedoria devastam- nos gravemente, fazendo esquecer que a cultura e a democracia começam, lembrava Agostinho da Silva, " no comer decente, no habitar seguro, no vestir confortável, no pensar livre".

Ora os alicerces do pensar livre assentam na escrita e no livro, no convívio e na liberdade, na memória e na imaginação, daí a subalternidade a que esses alicerces são remetidos. A escrita, última trincheira da liberdade individual, está a ser, propositadamente, depreciada.

O economicismo tem sido devastador, como a desterritorialização criativa (quem não pertence a um lugar não pertence ao mundo), a sobranceria lobística, a corrupção legalizada, o desnivelamento social, o esbulho fiscal.

A seguir ao 25 de Abril gerou-se nos órgãos de comunicação social a ideia de que a cultura não devia estar circunscrita a secções definidas, como era tradição entre nós.

Na verdade, os jornais tinham como referência suplementos próprios a ela dedicados, como os suplementos literários, alguns de grande influência e qualidade, como os do, entre outos, Diário de Lisboa, Diário de Notícias, Primeiro de Janeiro, Jornal do Fundão, fazendo orgulho nisso, pois eram suportes preciosos para a divulgação, debate, revelação da criatividade nas artes, nas ideias, no pensamento de então.

A supremacia da informação sobre a cultura, que se impôs (uma informação ideologicamente comprometida), subalternizou esses suplementos, esvaziando a sua vitalidade, até que os extinguiu sem estremecimento nem alternativa.

Ao querer espalhar-se a cultura por todas as páginas, como se defendia, acabou-se por atirá-la pela borda fora – como se pretendia?

O deserto dela, cultura (e criatividade, e inovação, e reflexão) contaminou a vida actual, escamoteando às pessoas capacidade crítica, acção interventiva, esperança em si mesmas. Osresultados eleitorais são consequência disso.

"Portugal é um país de castrados pelo terrorismo verbal. Não presto para essas revoluções! ",exclama Natália Correia

Fernando Dacosta

em poucas palavras

Portugal assobia perante o horror da invasão de Gaza. Ao contrário de Espanha ou da Irlanda. 

Agora é a vez da Itália se ôpor à invasão, pela voz de Antonio Tajanidos, ministro italiano dos Negócios Estrangeiros da mais à Direita Giorgia Meloni.

18 mil crianças morreram num total de 50 mil palestinianos, segundo a ONU. Em 19 meses de invasão de um território do tamanho da peninsula de Setúbal. 

E os terroristas do Hamas? Mortos ou capturados? 

Não se viu um!

FALTA DE FOLHA

Bem podes atar as folhas aos ramos que o Outono chega na mesma. 

Nunca fui de levar a sério a inevitabilidade. Sou mais de matutar no que pode ser evitado. 

Que, como o farmacêutico, não gosto de chatices sem remédio. 

Ou como dizia um velho amigo ao fim de três balões de medronho, no seu estilo de sabedoria primordial: 'o que nos mata deixa de nos moer'. Pois...

Natália Correia: Portugal e as Espanhas


Natália Correia foi desses seres que chegam adiantados no tempo, vindos do futuro para no-lo antecipar. Miguel Torga dizia que ela nasceu póstuma. 

A excepcionalidade de Natália Correia não lhe permitiu, por isso, caber nas normas, nas ideologias, nas culturas, nas religiões, nos sentimentos que a envolviam - e que logo ela extravasou, inovou.

Saudade 

Tem um xaile velhinho de soluços

E em golfadas de névoa canta o fado.

De apodrecidas naus atam-lhe os pulsos

Cordas que à luz içaram o irrevelado.


Nos aluados olhos tem convulsos

Trapos de um rei em brumas enguiçado

E de sonhos astrais sangram expulsos

Seus gestos no umbral de um céu vedado.


A perdição da coisa desejada

Por desmedida é sua roxa sina

A arder num cristal de castidade.


Dos confins do futuro enamorada

Dorme o tempo em seus braços de neblina.

Retráctil flor de ausência. É a Saudade.