As palavras densas ora gelam ora incendeiam, não são cinzas. Por perigosas, certos poderes querem que elas percam futuro, definhem em jornais, livros, teatros, pensamentos

Ler implica esforços, lucidez, daí a sua conveniente desvalorização, o repetir-se que uma imagem vale mil palavras quando o contrário é igualmente verdadeiro: quantas mil imagens são necessárias para uma palavra só, como saudade?

Última trincheira da liberdade individual, porque visceralmente autónoma e intemporal, a escrita tornou-se difusora privilegiada de ideias, memórias, inovações, documentando cada época tal como, no concreto, muito do nela edificado. 

As suas palavras podem revelar-se tão sólidas como as pedras, a literatura tão duradoura como a arquitectura. 

Apesar disso (talvez por isso) ela, literatura, foi varrida pelos actuais órgãos de comunicação, ignorada pelos poderes, usurpada pelo fisco, infantilizada pelo ensino.

Ora o primeiro afloramento civilizacional que projectou Portugal além fronteiras, lembrava Fernando Pessoa, foi de natureza literária (poemas do Cancioneiro e crónicas de cavalaria), não militar, não comercial, não religiosa. Os nossos maiores génios, Camões e Pessoa, são poetas – universais.

A grande literatura pertence ao domínio do sagrado, não do super mercado, provocava outro génio, também poeta: Natália Correia.

F. D.

Pansexualidade do feminino

manifestação em Paris de feministas

Dilatando o conceito de feminismo que, nas últimas décadas, tem norteado a luta pela afirmação das mulheres, Natália Correia criou o de femininismo - que vultos marcantes da cultura ocidental, como a escritora Marguerite Youcenar, apoiaram e adoptaram.

A autora de Sonetos Românticos pretendeu com isso alargar horizontes nos que defendem a igualdade da mulher (alguns a superioridade) relativamente ao homem, para reivindicar, como objectivo superior, a dignificação do feminino, feminino que tanto existe na mulher como no homem (bis, trans, pans) pois representa a parte mais sensível, afectiva, criativa do ser humano.

Daí o seu apoio a movimentos defensores de minorias, migrantes, negros, LGBT, ciganos, idosos, sem abrigo, sem justiça; daí a sua reserva a lutas entre sexos como as que surgiriam no chamado #MeToo; daí a sua discordância com as mulheres que, em lugares de poder, imitam, ultrapassando, os comportamentos masculinos num, palavras suas, "travestismo insuportável".

A maior parte de nós, no entanto, não a compreendeu (ainda), não a escutou (ainda). "Tenho tanta coisa a dizer e tão poucos a quem dizer", reconhecia, sempre lúcida, sempre futura, pouco antes de morrer.

Fernando Dacosta